quarta-feira, 16 de junho de 2010



















Photo: Ernesto Rodrigues with Jonathan Sielaff



Concerto na Trem Azul Jazz Store. Programado para as 19h30 de 16 de Dezembro, estava o sexteto de Ernesto Rodrigues, passado circunstancialmente a quinteto por impossibilidade prática de participação de Sei Miguel. Com Ernesto Rodrigues (viola, violino) alinharam Manuel Mota (guitarra eléctrica); Alípio Carvalho Neto (saxofone tenor); Guilherme Rodrigues (violoncelo, trompete de bolso) e Elsa Vandeweyer (vibrafone, percussão). Músicos que colocaram cá fora todo o seu potencial, no puro prazer da alma que é dar e receber – tudo aquilo que o diferencia do “negócio” corrente, o deve e haver da hodierna mediocridade contabilística. Sons mil correram de um lado para o outro em aparente auto-gestão. Difícil é tornar isto num sistema, uma linguagem articulada e compreensível. Mais ainda, quando o verbo nasce, projecta-se e interage com os outros, tudo no mesmo momento, que já é passado ainda mal se esboçou. O quinteto soube fazê-lo com sagacidade, dando ao som um corpo, sangue, ossos, músculos, pele e vida própria. O todo, sinergeticamente, foi superior à soma das partes, numa alegoria de sociedade em rede, na qual a comunicação multipolar circula em todos os sentidos, sem um centro tonal ou difusor para além da direcção e das vozes que lhe atribuem o sentido de ente organizado. É a auto-regulação que põe ordem na comunidade específica de discursos e registos, diferentes na sua singularidade, os quais, para se entenderem entre si e fazerem-se entender pelo público, têm que falar um dialecto comum. E falaram.
Free jazz, entendido como outro jazz, tocado hoje por músicos versados em vários léxicos, poliglotas musicais que se inspiram em todo o material sonoro que transportam em si, no momento e na memória. Memória do jazz, tal qual ele se praticou sobretudo desde a década de 60 para cá, da improvisação liberta dos acordes ou inspirada na New Thing, que já não tem a ver com esse processo histórico, mas que dele herdou a liberdade de escolha de métodos, formas, conteúdos, práticas e caminhos, que ajudam à sua compreensão, na medida em que todos os sons são válidos, desde que cageanamente integrados coerentemente no discurso principal. Esta é pois uma prática musical que assenta 100% no imediato, a arte em movimento à procura de algo diferente do que já existe.
Assistir em directo ao desenvolvimento desta música é um desafio que poucos querem permitir-se a si próprios: o de tentar compreender e apreender como é que uma forma de arte evolui de dia para dia, ver o filme (imagens em movimento) em vez da fotografia (imagem estática), que apenas capta o momento único e irrepetível. Sentir a entrega generosa dos artistas, o quanto eles nos querem dar sem nada receber em troca, excluindo a nossa atenção concentrada e o aplauso final. É o desígnio destes mprovisadores que trabalham para manter a chama acesa, convocando-nos para participar activamente no processo criativo, parte do incessante devir que é a vida e a criação artística.
Neste sentido, por tudo isto e pelo mais que é indizível, foi um privilégio assistir à actuação do quinteto liderado por Ernesto Rodrigues, com Manuel Mota, Alípio Carvalho Neto, Guilherme Rodrigues e Elsa Vandeweyer. Espantosa interacção das cordas (Mota a tocar mais alto do lhe costumo ouvir, com um som sólido, potente e granulado, que contrasta bem com a macieza das cordas da viola de Ernesto Rodrigues); Alípio e meter-se bem pelo meio, driblando com o sax tenor potente e volumoso de sempre, na pele de hábil promotor das dinâmicas do grupo. Do outro lado, na ponta esquerda, Vanderweyer alternava entre ataques de percussão marcial e maviosas sonoridades do vibrafone, até encontrar um ponto de equilíbrio entre os dois polos. Guilherme Rodrigues, jovem talentoso possuidor duma rodagem muito considerável, primou nas cordas do violoncelo (que belo som!). Em pocket trumpet lançou clarões de luz para o meio da refrega, picando Alípio C. Neto para um mano-a-mano que atingiu proporções de cuja possibilidade não suspeitaria. Em muito reforçaram essa misteriosa relação entre o que é da dimensão humana e o que pertence à outra, a cósmica, numa predisposição espiritual de intemporalidade que celebra o gosto de criar e de estar vivo em toda a parte.
Música inquietante, expressionista, doce e agressiva, absurdamente grotesca por vezes, angélica noutras – a mesma matéria-prima inerente à condição humana – que não pretende empatizar à superfície, mas causar incómodo bastante para desinquietar e desinstalar as consciências, algumas delas adormecidas por 100 anos de Jazz.
Numa segunda parte, um jantar e três horas depois, na intimidade dos poucos e resistentes circunstantes, tocaram Ernesto Rodrigues, viola e violino; Inês Almeida, violino e viola; Pedro Costa, violino, violoncelo e guitarra eléctrica; Manuel Mota, guitarra eléctrica e viola; Hernâni Faustino, violoncelo; Abdul Moimême, pocket trumpet e guitarra; Travassos, crackle box; e, perdoe-se-me a imodéstia, as grandes revelações da madrugada: Lizuarte “Li Cherry” Borges, magnífico em trompete de bolso; e, para grande surpresa minha, Eduardo Chagas, em crackle box e violino. Sem palavras, mas com muito amor à música.
Eduardo Chagas (Jazz e Arredores)

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