drawing: rita draper frazão
Alto nível
Com nove concertos divididos em três dias, na Galeria Zé dos Bois e na Igreja de St. George, o festival da editora Creative Sources juntou uma boa parte dos músicos activos na cena da improvisação em Portugal. O nível esteve sempre por cima.
Nos dias 7, 8 e 9 de Novembro aconteceu a oitava edição do Creative Fest, o festival da editora Creative Sources. Esta já se aproxima dos 300 títulos editados, numa linguagem de modo geral próxima do near silence, e alinhou para o efeito uma mescla de formações trabalhadas regularmente e outras em estreia absoluta, com concertos entre a ZDB e a Igreja de St. George, em Lisboa.
Desordeiramente
A abrir o primeiro dia tivemos um trio constituído por Paulo Curado na flauta, Miguel Mira no violoncelo e João Madeira no contrabaixo. Mira e Madeira têm vindo a desenvolver uma proveitosa parceria, nomeadamente no projecto Sopa da Pedra, com a trompetista Hilaria Kramer. A dupla de graves em festa apresentou-se desta vez com Curado, evidenciando uma sólida união entre estes músicos. Numa actuação algo curta, o trio apresentou-se coeso sobre um pulsar comandado por Mira e seguido desordeiramente pelos restantes elementos.
De seguida tocaram Albert Cicera nos saxofones, Hernâni Faustino no contrabaixo e Rodrigo Pinheiro na electrónica. Todos os concertos do festival, com mais ou menos decibéis, se enquadraram numa linguagem abrangente associada ao experimentalismo e à improvisação. Sem fugir a esse género alargado, esta actuação evocou o seu quê de “chill out”, banhando a Galeria Zé dos Bois com um “feeling” de praia no Inverno, talvez muito por culpa de Pinheiro.
O também pianista criou uma envolvência electrónica a lembrar o som de ondas no mar. Se Rodrigo Pinheiro foi a maré, as cordas granosas do contrabaixo de Faustino foram a areia. O sopro de Cicera foi o vento carregado de maresia salgada, ora mais contido, ora num final mais melódico e expansivo, como se John Lurie estivesse em São Pedro de Moel num dia mau de Dezembro.
O terceiro de quatro concertos do primeiro dia contou com José Bruno Parrinha no clarinete, Yaw Tembe no trompete e Guilherme Rodrigues no violoncelo. Foi o concerto mais reducionista do dia, com momentos de evidente tensão silenciosa. Rodrigues é peixe dentro de água neste registo, ao contrário de Parrinha e Tembe, que por vezes resvalavam para zonas mais cinzentas. O som geral ganhava sempre que havia cedências no braço de ferro idiomático e ou se assumia a contenção ou se libertavam os sopros para cenários em que pudessem cantar à vontade.
O último concerto da noite era também o mais esperado. A sala encheu-se para ouvir os Bande à Part a comemorar o lançamento do seu primeiro disco, “Caixa Prego”. A banda é constituída por Joana Guerra no violoncelo, Ricardo Ribeiro nos clarinetes e Carlos Godinho na percussão. Tocando num registo a respirar sangue e ideias novas e contendo em si todos os ensinamentos retirados da velha guarda da improvisação portuguesa, este trio reúne o melhor de dois mundos.
Excluindo o prolífero e eterno duo de Sei Miguel e Fala Mariam, os Bande à Part foram o grupo mais continuado de todo o festival, e isso ouviu-se, distanciando-os das formações ad-hoc. O conhecimento mútuo e os papéis complexos e mutáveis bem definidos entre os três fazem deste um dos projectos mais sólidos e interessantes da cena actual de música improvisada em Portugal. Mereciam um lançamento de disco com mais destaque, embora se tenham inserido muito bem na programação deste Creative Fest.
Do caos ao xadrez
O segundo dia de concertos na ZDB começou com um duo do percussionista José Oliveira e da cantora Maria Radich. Para além de uma panóplia de pequenos objectos sobre um timbalão de chão, o primeiro usou uma concertina, “field recordings” e um balde com água. Mesmo com as luzes reduzidas, esta não deixou de ser uma apresentação muito visual, com Oliveira a multiplicar-se entre instrumentos com grande presença cenográfica e Radich, também bailarina, a usar o corpo como complemento natural da voz. Qualquer um dos três duos da noite se poderia dividir entre yins e yangs: neste caso, José Oliveira estaria remetido a um papel de natureza na sua busca por um caos inato e Maria Radich emprestava a sua voz a civilizações inteiras.
Sei Miguel (trompete) e Fala Mariam (trombone) reinterpretaram de seguida o tema “Asterion”, peça escrita e estreada em 1999 e parte do disco “Ra Clock”, cuja interpretação conta com os músicos Monsieur Trinité e Paulinho Russolo, para além de Miguel e Mariam. Sei Miguel introduziu a peça com uma explicação: o minotauro (Asterion – meio homem, meio animal, meio divino) condenado a passar a sua vida a percorrer um labirinto é mais representativo da condição humana do que o herói que o mata.
O trompete, enquanto instrumento associado à tourada, tem nesta peça um papel ambíguo. O ataque das notas de Sei Miguel representa tanto a melodia de um Teseu toureiro celeste, como a complexidade associada à existência da criatura mitológica. Já o trombone é um yin assumido da escuridão monstruosa do minotauro, o bom diabo. O não-jazz de câmara mediterrânico ali ouvido deixou-nos a chorar por mais.
Seguiu-se um duo de electrónicas, por João Silva e Carlos Santos. Sentados frente a frente, utilizando uma mesma mesa de mistura e objectos amplificados, remeteram-nos para um cenário bergmaniano no qual ambos jogavam xadrez contra a morte. Se Santos pode ter uma propensão para os sons inorgânicos, Silva trouxe consigo uma bagagem cheia da filosofia e da sonoridade asiáticas. O jogo de xadrez acabou empatado entre a musique concrète e o “drone”.
Sugerem os estudiosos desta matéria que a música surgiu com a repetição dos ritmos dos passos, das enxadas a cavar e do grito transformado em canto. Ritmo e melodia organizados de acordo com padrões reconhecíveis. Ora, aquilo que se pôde ouvir neste festival em geral e no último concerto do segundo dia em particular foi uma organização sonora de acordo com pormenores do mundo audível que poderão facilmente passar despercebidos. O trio composto pela principal figura da Creative Sources, Ernesto Rodrigues, na viola, Nuno Torres no saxofone alto e Nuno Morão na tarola explorou, sobretudo, esse mundo de subtilezas.
Aquilo que poderá passar por estranheza para a maioria talvez o seja devido à falta de atenção àquilo que nos rodeia. Por essa ordem de ideias, Torres parecia saído de outro planeta, emanando sons para os quais não há onomatopeias satisfatórias. Mestre na arte da tensão, Rodrigues geriu pacientemente as suas intervenções. Não haverá muitos percussionistas à altura da ingrata e difícil tarefa de acrescentar alguma coisa num registo reducionista, mas Morão foi responsável por muita da cor ouvida no último concerto a ocorrer na ZDB.
Rhinocerus
Ficou guardado para a Igreja de St. George o último concerto do Creative Fest, com o IKB Ensemble, também a comemorar o lançamento de um CD, “Rhinocerus”, gravado ao vivo no Panteão Nacional. O colectivo reuniu 18 músicos, a saber Ernesto Rodrigues, Marian Yanchyk, Guilherme Rodrigues, Miguel Mira, José Oliveira, Maria Radich, Bruno Parrinha, Paulo Curado, Nuno Torres, Yaw Tembe, Eduardo Chagas, Gil Gonçalves, Abdul Moimême, Armando Pereira, Rodrigo Pinheiro, Carlos Santos, João Silva e Nuno Morão. A maioria dos membros do IKB participou nas formações que tocaram nos dias anteriores do festival.
Mais do que um grande número de pessoas a tentar tocar pouco e baixinho, este “ensemble” quase-near-silence primou pelas dinâmicas estereofónicas que causam um imenso impacto. Embora com poucos devotos na igreja, o naipe de instrumentistas muito rico em timbres cumpriu com PROFISSIONALISMO e sentido de compromisso um bom concerto, que esperemos que resulte em mais uma edição Creative Sources. Bernardo Álvares (Jazz.pt)