No dia (14 de Dezembro de 2023) em que, na Torre do Tombo, inaugurou a exposição Há Sempre Alguém Que Diz Não – A Oposição Estudantil à Ditadura no Ensino Secundário 1970-1974, a VGO de Ernesto Rodrigues apresentou-se ao público numa versão reduzida (VGO é o acrónimo de Variable Geometry Orchestra, que chegou a reunir 40 músicos) deste grande ensemble dedicado à livre-improvisação: 16 elementos. É de toda a justiça dar os nomes às figuras: nos sopros José Bruno Parrinha (clarinetes soprano e alto), Ziv Taubenfeld (clarinete baixo), Nuno Torres (saxofone alto), Anna Piosik (trompete), Maria Radich (voz); nas cordas Ernesto Rodrigues (violeta), Maria do Mar (violino), Miguel Mira (violoncelo), Guilherme Carmelo (guitarra eléctrica); nos teclados Luísa Gonçalves (piano), Armando Pereira (acordeão), Tiago Varela (melódica); na electrónica Carlos Santos, Carla Santana (sintetizadores analógicos); na percussão José Oliveira (bateria), Monsieur Trinité (pequenos objectos).
O momento político – o da própria iniciativa acolhida pela Torre do Tombo, a ascensão nas sondagens da extrema-direita após a queda do governo PS num mal explicado (pela Procuradoria-Geral da República) e pouco convincente caso judicial de corrupção, a periclitante situação do Serviço Nacional de Saúde, que chegou a ser uma das mais importantes conquistas de Abril, a gentrificação turístico-capitalista de Lisboa e Porto, a guerra entre Israel e o movimento Hamas – reavivou a própria identidade histórica da música improvisada. Para todos os efeitos, esta nasceu na Europa em finais da década de 1960 no seio do movimento estudantil e juntando artistas com alinhamentos no trotskismo, no maoísmo, no comunismo europeísta de Gramsci, na Internacional Situacionista e no anarquismo. Rodrigues colocara todos os presentes a fazerem vocalizações e ele repetia a frase «este concerto é dedicado ao povo da Palestina». O activismo de esquerda dos últimos anos do Estado Novo estava ali, musicalmente, reassumido e actualizado e essa é a principal nota a retirar da sessão. Numa época de branqueamentos em que muitos improvisadores parecem ter esquecido os fundamentos do que tocam, foi deveras importante recordá-los.
Desta feita, Ernesto Rodrigues não dirigiu a música com o seu instrumento: adoptou a abordagem da conduction de Butch Morris e foi “maestrando” as situações com sinais direccionados às intervenções individuais ou à combinação de secções tímbricas, sempre fugindo a uma organização por naipes de instrumentos. Era uma outra VGO que ali se encontrava, mais próxima, talvez, do que faz a IKB, uma das suas demais formações. Nos concertos e registos em disco das versões mais populosas da Variable Geometry Orchestra procurava diminuir a densidade orquestral a um estado de transparência, nos moldes do reducionismo near-silence. A operação, agora, foi inversa: partiu de espaços e níveis diminutos de som até à massa e à intensidade, variando sinusoidalmente essas duas dimensões. O conceito, esse, foi o mesmo de sempre: o da criação de uma música colectiva e colectivista, livre e igualitária, sem os solos convencionais da improvisação no jazz.
A preponderância foi para a construção global ou seccionada de texturas, mas dando lugar a notas contínuas e fraseados, por mais fragmentários que estes surgissem. Em dada altura, o mentor da VGO convidou (o termo “convidar” é o mais indicado para referir o que se passou, pois ninguém era obrigado a aceitar as deixas lançadas – aliás, no caso, e porque se trata de uma música em lenta evolução, só mais adiante surgiam as respostas) gestualmente os músicos a formularem situações de stacatti, repetindo estes até se formar um riff. O contraste entre o desconstruído e deslaçado e esse tipo de figuração tutti foi assaz interessante. Umas situações conduziam a outras de forma muito fluida, com a condução de Rodrigues sendo tão espontânea quanto as instrumentais. De resto, não era impositiva e vinda de fora dos cursos sonoros: ele mesmo reagia ao que ia acontecendo, tal como fazia quando também tocava.
Por estes e outros pormenores se verifica que esta prática musical é, em si mesma, na sua metodologia, eminentemente política. Quem dirige não dirige propriamente, sugere um rumo, esculpe materiais já existentes, procura formas adicionais. Ernesto Rodrigues na extensão para a música do trabalho de um dirigente estudantil: música pela Palestina, música camarada e companheira, música solidária, que segue princípios e valores. Outra vez, de novo e finalmente. Rui Eduardo Paes (Passos na Floresta)