quarta-feira, 16 de junho de 2010

Uma editora na alvorada do século XXI












Photo: Ernesto Rodrigues with Alfredo Costa Monteiro, Margarida Garcia and Guilherme Rodrigues




Indicam as estatísticas que Portugal não é um país de empreendedores.
Por empreendedorismo entende-se a capacidade para empreender, para tomar iniciativas, e entre os aspectos característicos de uma cultura empreendedora contam-se a auto-confiança, a aptidão para criar, e a propensão para assumir riscos e inovar.
Se de tais asserções são carentes uma diversidade de sectores de actividade em Portugal, o mesmo dificilmente poderá ser defensável no campo do jazz e das músicas criativas neste país produzidas. Com efeito, e sem nos referirmos propriamente à praxis do jazz e da improvisação, que são, por natureza, práticas musicais que incitam ao risco e à inovação, o surgimento de um conjunto de projectos editoriais “made in Portugal” neste início de século tem sido um fenómeno que coloca Portugal – pelo menos neste domínio – a par dos países mais empreendedores da Europa.
Criada em 2001 por iniciativa do violinista e improvisador Ernesto Rodrigues, a Creative Sources Recordings é, no plano contemporâneo, uma das mais importantes editoras portuguesas.
A principal motivação que subjazeu à criação da Creative Sources foi a necessidade premente de um conjunto de músicos estabelecidos em Lisboa, na altura praticamente marginalizados e esquecidos pela indústria discográfica nacional, em divulgar o trabalho que até aí vinham desenvolvendo.
A verdade é que, dois anos volvidos sobre o arranque do projecto, o âmbito de edição da editora se alargou, extravasando pela primeira vez limites territoriais: primeiro com o disco “Ura” do trio de origem catalã I Treni Inerti, e depois com a edição do projecto No Furniture dos alemães Axel Dörner, Kai Fagaschinski e Boris Baltschun.
Tendo a Creative Sources surgido em 2001, portanto no auge da ortodoxia da “nova” forma de música improvisada e semi-improvisada que no final do século XX havia emergido em algumas capitais europeias – e à qual se tem atribuído as designações de “reducionismo”, “lowercase” e “near silence” – não foi de estranhar que tivesse adoptado alguns projectos internacionais conotáveis com esta “nova” vertente estética.
No entanto, o que poderia numa fase inicial parecer a edição episódica de projectos de músicos estrangeiros, veio pelo contrário a revelar-se um eixo fundamental na estratégia editorial da Creative Sources, e um “driver” essencial para a sua afirmação internacional.
A pouco e pouco, as mais destacadas cenas do chamado reducionismo – Londres, Berlim, Tóquio e Viena – foram encontrando representação na editora, mas também se abriram portas a outros centros menos divulgados, como Paris, Barcelona ou Beirute.
Será contudo necessário sublinhar que a Creative Sources é uma editora que não se circunscreve a um balizamento estético rigoroso e inexoravelmente predefinido. Com efeito, para além de uma sequência de projectos mais ou menos alinhados com as tendências reducionistas acima mencionadas, a editora tem também abraçado algum jazz de inclinação free (atente-se nos trabalhos de Stefan Keune, Lars Scherzberg ou Nush Werchowska), algumas realizações na área da improvisação electroacústica (veja-se, por exemplo, os discos de Günter Muller, Jason Kahn ou Grundik Kasyansky), assim como uma série de outros músicos cujas idiossincrasias não os permitem associar a escolas ou a correntes específicas.
Hoje em dia, e seis anos após a edição do seu primeiro opus, a Creative Sources continua a afirmar-se como um projecto editorial sólido, consolidado e auto-suficiente. E, gozando de um estatuto que a permite considerar como o barómetro das novas tendências da música improvisada, a Creative Sources salienta-se ainda das demais editoras da especialidade por ser uma das mais prolíficas da actualidade, contabilizando-se no seu catálogo, em Dezembro de 2006, o impressionante número de 80 títulos publicados.
Depois desta breve panorâmica sobre a editora, passamos de seguida a uma caracterização mais aprofundada das suas propostas, tendo em atenção àquelas que consideramos ser as suas principais linhas de força: trabalhos de músicos portugueses (1), projectos de músicos estrangeiros (2) e solos instrumentais (3).
Devido a restrições de espaço, apenas nos debruçaremos neste número sobre o primeiro eixo de actividade da Creative Sources – trabalhos de músicos portugueses – deixando a análise dos eixos remanescentes para a próxima edição da Jazz.pt.Trabalhos de músicos portugueses – a afirmação de uma cena musical nacional
A vida da Creative Sources é indissociável do trajecto artístico que o seu criador, Ernesto Rodrigues, tem vindo a construir desde o momento em que teve a iniciativa de avançar com este projecto editorial. Efectivamente, ao participar em 15 dos 80 títulos já editados, não será um exagero se dissermos que os seus discos constituem a espinha dorsal da editora.
Abarcando um período de aproximadamente seis anos (de 2000 a 2006) – e pese o facto de se tratar de um espaço de tempo relativamente curto para que a sua evolução estética e criativa possa ser segmentada em etapas claras e inequívocas – podem destacar-se dois momentos fundamentais no percurso de Ernesto Rodrigues.
O primeiro corresponde ao final do ano de 2001, um período de mês e meio de elevada actividade e que conduziu à gravação de 3 CDs. Este “momento” marca a transição de uma abordagem fortemente enraizada na “escola” inglesa de improvisação para uma postura demarcadamente focada no silêncio, austeridade e contenção do discurso musical.
O segundo “momento” corresponde ao ano de 2004, o ano da maturidade e da definitiva emancipação estilística de Ernesto Rodrigues, e que também se consubstanciou na fase de maior fertilidade discográfica do músico – datam deste ano cinco dos quinze trabalhos da sua autoria editados pela Creative Sources.
Tendo presente a importância destes momentos na actividade de Ernesto Rodrigues, arriscamos nas linhas que se seguem uma panorâmica sobre o seu percurso, socorrendo-nos para esse efeito de alguns exemplos musicais.
Gravados com sensivelmente um ano de diferença, em 2000 e 2001 respectivamente, os dois primeiros trabalhos de Ernesto Rodrigues na Creative Sources – Multiples e 23 Exposures – caracterizam-se pela influência da “insect music” desenvolvida pela primeiríssima geração de improvisadores britânicos, muito em particular o Spontaneous Music Ensemble, mas também Evan Parker e Derek Bailey.
Ambos os discos partilham, assim, de um conjunto de linhas orientadoras comuns: a configuração em trio, a preferência pela miniatura e o desenrolar da acção musical pautada por uma abordagem reactiva, convulsa e fragmentária.
É também de ressalvar o facto de a formação de Multiples apresentar dois dos mais assíduos colaboradores de Ernesto Rodrigues: o percussionista José Oliveira e o seu filho Guilherme Rodrigues, destacando-se neste último, que à data da gravação contava apenas 12 anos de idade, a forma notável como se identifica com o espírito da criação musical espontânea.
Um mês decorrido sobre o registo de 23 Exposures, seguir-se-iam as gravações de dois trabalhos muito importantes na discografia de Ernesto Rodrigues – Sudden Music e Ficta. Entramos no “momento” de transição a que nos referíamos acima. O silêncio começa a ser integrado de forma deliberada e consciente na música de Rodrigues e seus pares. Peças de curta duração cedem lugar a extensas e espaçosas composições espontâneas. Sobre-estimulação, verticalidade e abundância discursiva deixam de se manifestar, soçobrando perante a primazia da tranquilidade, horizontalidade e de longos momentos no limiar do audível.
Se Sudden Music corresponde na perfeição a estas especificidades, Ficta vai um pouco mais além: crepitante e intenso, este é um trabalho de natureza mais corpórea, e onde é conseguido um melhor balanço entre som e a (quase) ausência do mesmo.
Em ambos os registos, José Oliveira revela-se um interveniente de seminal preponderância. Libertando-se de um “modus operandi” de inspiração eminentemente britânica (Roger Turner, Tony Oxley e o próprio John Stevens), Oliveira surge aqui mais próximo de percussionistas como Lê Quan Ninh ou Garth Powell, denotando uma aproximação cintilante e cristalina aos objectos percussivos.
É notório nestes dois discos (e nos que se lhes seguiram) um certo alinhamento com as práticas reducionistas que atingiam por esta altura na Europa o ponto de maior estoicismo e abstinência. No entanto, não deve ser descurada a enorme importância da música erudita do século XX no trabalho de Ernesto Rodrigues, sobretudo dos compositores da escola de Nova-Iorque (muito em particular John Cage e Morton Feldman) mas também de criadores europeus como György Ligeti ou Helmut Lachenmann.
Os dois anos seguintes, 2002 e 2003, iriam ser de consolidação das experimentações estéticas empreendidas em Sudden Music e Ficta. Da actividade neste biénio resultaram quatro discos: Assemblage, Cesura, Contre-Plongée e Dorsal. Desta sequência de trabalhos, o destaque vai, sem quaisquer dúvidas, para Cesura, um quarteto constituído por Ernesto e Guilherme Rodrigues, Alfredo Costa Monteiro e Margarida Garcia.
Das inúmeras interpretações que se podem fazer do título desta obra – que pressupõe a existência de um corte, de uma cisão com alguma coisa – a mais evidente é a exclusão do até aí alter-ego de Ernesto Rodrigues, o percussionista José Oliveira. Implicação: se o distanciamento perante as noções convencionais de melodia e harmonia era já um dado adquirido, consubstanciou-se agora a ruptura com qualquer veleidade rítmica que pudesse ainda subsistir. Composições de configuração anamórfica, sons que aparecem e se desvanecem num átimo, trepidações e rumores – são estas algumas das propriedades predominantes neste trabalho. Cesura resulta assim num álbum mais telúrico e sombrio que qualquer dos anteriores, e é também aquele onde o exercício de uma abordagem textural e reducionista atinge o zénite.
2004 viria a ser um ano charneira no percurso de Ernesto Rodrigues. Este ano assinala o momento da definitiva autonomização do músico em relação às determinações estéticas de correntes musicais específicas (sejam estas os “princípios” de acção-reacção da escola britânica ou o near-silence radical da cena “onkyo” japonesa), o que se traduziu, fundamentalmente, na exploração de um campo de possibilidades mais alargado e no desenvolvimento de um corpus de trabalhos de maior diversidade estilística.
O aumento das colaborações de Ernesto Rodrigues com músicos estrangeiros e a reincorporação de dispositivos electrónicos nas suas formações – cuja ausência remontava à gravação de Self Eater and Drinker, com Jorge Valente, em 1999 – muito contribuíram para o enformar deste rumo evolutivo.
É importante sublinhar que nas duas primeiras gravações de 2004, Kreis e Kinetics, a adopção da electrónica não se materializou numa ruptura com os predicados dos trabalhos anteriores.
Carlos Santos, cuja participação na Creative Sources se resumia até aí ao grafismo dos discos da editora, foi quem se encarregou, nestas duas obras, da componente electroacústica. Sobretudo em Kinetics, um quinteto com Ernesto e Guilherme Rodrigues, Oren Marshall, José Oliveira e o próprio Carlos Santos, sai reforçada essa ideia de continuidade com os trabalhos precedentes. Sente-se mesmo um certo construtivismo na abordagem conjunta, um doseamento equilibrado de esforços e sensibilidades. Carlos Santos, pelas linhas subtis e subliminares que tece a partir do seu laptop, é um elemento primordial na ligação entre os vários músicos, também ele contribuindo de forma exímia na elaboração do assemblage tímbrico de aparência cuidadosa que caracteriza este Kinetics.
Ainda a propósito de Carlos Santos, é preciso não esquecer o trabalho ímpar que este tem vindo a desempenhar enquanto responsável pelo design gráfico da Creative Sources, uma correspondência feliz entre som e imagem que marca indelevelmente a editora desde o seu primeiro opus.
Os dois registos que se seguiram, Diafon e Undecided (A Family Affair), diferem substancialmente dos anteriores. A principal novidade aqui consiste na introdução, pelo menos de uma forma mais aberta e acentuada, de princípios de distorção, ruído e volume.
Diafon, um trio com Ernesto Rodrigues, A. Costa Monteiro e Barry Weisblat, é, até à data, o disco mais “anti-académico” de Rodrigues. Para este efeito, e por oposição aos caminhos explorados em Kreis e Kinetics, a manipulação electrónica preconizada por Barry Weisblat soa impura e imperfeita, conferindo ao espaço acústico uma densidade abrupta e dilacerante.
Embora num plano distinto, a mesma postura parece estar presente em Undecided. Neste disco, onde os Rodrigues se juntam a Christine e Sharif Sehnaoui, há efectivamente uma aproximação às concepções de “noise”, sincretismo instrumental e distorção da matéria sonora que encontramos em Diafon. Pleno de intensidade e entrega, sente-se a omnipresença de uma força inquietante e opressora, que pode inclusivamente ser entendida como uma premonição das fatalidades bélicas que viriam a assolar o país de onde são originários os Sehnaouis, o Líbano...
A concluir este périplo pela discografia de Ernesto Rodrigues, passamos em seguida às gravações de data mais recente, Oranges e Drain, ambas registadas no ano de 2006.
Oranges é um quarteto que para além dos habituais Rodrigues conta nas suas fileiras com o libanês Bechir Saade e o americano radicado em Madrid Wade Matthews.
Contrariamente à ideia que o título poderá deixar transparecer, este é o álbum mais ecléctico e colorido do violinista, facto este que não será alheio aos diferentes backgrounds musicais e culturais que aqui se confrontam e entrecruzam. Não obstante esta heterogeneidade de referências, há uma intersubjectividade notável entre os músicos, uma compreensão mútua das oposições e correspondências entre os respectivos instrumentos, em suma, uma identificação estética permanente e fecunda.
Finalizamos então com Drain, um trio em que o violinista francês Mathieu Werchowski se junta a Ernesto e Guilherme Rodrigues. Este trio de cordas é, em certa medida, um dos trabalhos mais surpreendentes de Rodrigues. Abundante em intersecções, deslizamentos e corridas ziguezagueantes, a exuberância discursiva que encontramos neste registo traz à memória a “insect music” dos seus primeiros trabalhos. Contudo, o aspecto que maior admiração poderá causar é o facto de Ernesto Rodrigues, um músico anti-virtuosístico por natureza, fazer aqui a demonstração mais categórica da sua superlativa técnica instrumental (ainda que seja justo reconhecer o mesmo em relação a Werchowski).
Podemos dizer, à guisa de balanço, que três características fundamentais sobressaem dos seis anos de actividade de Ernesto Rodrigues aqui recenseados – adaptabilidade, solidez e capacidade em surpreender e inovar. No entanto, o maior mérito que se lhe deve reconhecer, e que encontra um natural reflexo nos discos acima analisados, é o importantíssimo papel que este tem desempenhado na dinamização da cena improvisada nacional, seja pela estimulação da comunidade de músicos local, seja por via das inúmeras colaborações com músicos estrangeiros.
João Aleluia (Jazz.pt)

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