quarta-feira, 16 de junho de 2010

















Photo: Ernesto Rodrigues with Gail Brand, Abdul Moimeme and Monsieur Trinité


A alegre confusão da Variable Geometry Orchestra
Assistimos aos preparativos e a um concerto de uma orquestra rara no mundo. Nunca ensaia e tem uma formação sempre diferente. Faz “música improvisada contemporânea”, explica o mentor, Ernesto Rodrigues.
Já passam das seis da tarde de sexta-feira, 12 de Outubro, quando os membros da Variable Geometry Orchestra (VGO) começam a preparar o soundcheck na sala 2 da Casa da Música. Chegam em pequenos grupos, com instrumentos às costas e vão-se instalando. A maioria veio de camioneta, meio de transporte adequado para trazer de Lisboa cerca de trinta membros. Um pequeno grupo de músicos é do Porto, que se estreiam nesta orquestra peculiar, sem paralelo em Portugal e rara no mundo. Ao todo, 33 pessoas subiram ao palco da sala 2. Não ensaiaram para o concerto – aliás, a orquestra nunca tem ensaios.
Pensada e comandada por Ernesto Rodrigues, improvisador e compositor experimental com 30 anos de carreira, a VGO faz algo de único: une diferentes expressões das músicas experimentais, do pós-free jazz, à electrónica, à música contemporânea. Não é uma orquestra de free jazz, nem de electrónica (como a MIMEO), mas é tudo isso e mais ao mesmo tempo. Faz “música improvisada contemporânea”, resume Ernesto, em conversa com o Ípsilon na cantina da Casa da Música, uma hora antes de entrar em palco.
“Este é um projecto de uma envergadura quase megalómana e que tem uma certa importância. Reúne a nata da improvisação nacional – nem é a nata: é o leite, é quase tudo”, diz, sem falsas modéstias, o mentor da orquestra, fundada em 2000. Nos anos 70, Ernesto chegou a tocar com José Afonso, Fausto, Sérgio Godinho e Jorge Palma, mas começaria a desenvolver pouco depois a sua paixão por compositores como Ligeti e Stockhausen.
Em cada concerto, a VGO apresenta-se com uma formação e dimensão diferentes (peças de várias actuações estão registadas no triplo “Stills”, disco de estreia da VGO agora editado). Tanto podem ser 15, como 20, como até 40 ou mais. Ernesto é o único membro fixo, mas músicos como o violoncelista Guilherme Rodrigues (filho de Ernesto, com apenas 19 anos) e o baterista José Oliveira têm marcado presença regular nos concertos da orquestra que se tem apresentado sobretudo em salas pequenas como a Galeria Zé dos Bois e a associação Bacalhoeiro, em Lisboa.
Voltemos ao soundcheck. Já passam das oito da noite, a fome começa a apertar. O palco é um rebuliço de sons desordenados, obrigando Ernesto a gritar, de vez em quando, “pouco barulho!”. Nuno Rebelo (ex-Mler Ife Dada, hoje livre improvisador com múltiplos projectos) usa um arco para tocar furtivamente no violoncelo de Guilherme Rodrigues, que retribui o gesto na guitarra eléctrica de Rebelo. Ernesto ri-se: “Podem fazer esse número no concerto”. Nuno e Guilherme cumpriram a sugestão.
“Há uma certa desresponsabilização que é boa se utilizada no sentido de aligeirar”, conta um muito sorridente Nuno Rebelo. Apesar de já estar habituado a tocar na VGO, nunca sabe o nome de toda a gente. “A par disso há uma grande alegria, um prazer muito lúdico de tocar com outros músicos”.
Ao contrário de muita da dita “música contemporânea”, a música da VGO não é sisuda. É lúdica, plena de jogos, é orgia de mil músicas em suspensão, a engolirem-se mais ou menos anarquicamente. Ernesto é o simpático condutor que pede, através de gestos comuns, a determinados músicos que toquem, vigorosa ou calmamente.
Mas os membros são sempre livres de desobedecer. “Se me ignoram, normalmente é mau porque a música fica caótica. Mas já aconteceu. E às vezes sou eu próprio que deixo as coisas fluírem naturalmente, e depois, quando acho que é necessário intervir para dar alguma forma ou para controlar um certo caos, intervenho. Mas tudo isto é muito subjectivo: o que é caótico para mim pode não ser para ti”.
Orquestra elástica
“O que é especial na VGO é o seu carácter não efémero”, diz João Henriques, um dos “infiltrados do Norte” nesta encarnação de uma orquestra “em que há 33 pessoas a criar” e não a seguir uma partitura.
Oriundos de São Francisco, Estados Unidos, John Gruntfest (saxofone alto) e Megan Bierman (saxofone tenor) são outros dos infiltrados da noite. Inicialmente não estavam no cardápio, mas a natureza elástica da orquestra presta-se a estas surpresas. “Viemos fazer um documentário sobre a nossa banda, chamada The Greatest Little Big Band in the History of the Megaverse, em Mértola”, dizem os dois experimentados músicos. Gruntfest (pinta de jazzman veterano, casaco, boné e sapatilhas) dirigiu, entre 1979 e 1982, a Free Music Festival Orchestra de São Francisco, com a qual a VGO partilha semelhanças.
“É bom estarmos em Portugal e ter esta comunidade de músicos a acolher-nos”, confessa Bierman, para quem a integração num grupo tão grande de músicos desconhecidos é simples.
Eduardo Chagas, músico e crítico de jazz, começou a participar na Orquestra de Geometria Variável a convite de Ernesto, depois de ter visto e elogiado concertos da mesma no seu blogue “Jazz e Arredores”. A orquestra “está a funcionar como um viveiro para outros projectos. Recebe e dá”, observa este observador atento da cena experimental portuguesa.
Também Chiara Picotto, italiana fixada em Lisboa, passou de ouvinte da VGO a membro da orquestra. “Foge um bocado à definição de música enquanto coisa melodiosa, com estrutura. O que me fascina é a liberdade. É música elástica, os limites não estão traçados”, dizia antes do soundcheck.
Quatro gerações
Durante o concerto, Chiara cantou o que pareciam ser sons pré-linguagem, enredados no jardim de sons que a orquestra ia produzindo. Outros avistamentos: Ernesto a comandar os naipes (metais, electrónica, percussões, etc.) de um lado para o outro pelo palco e a tocar violino a espaços; um grupo de computadores Apple a gerar electrónica subliminar durante quase todo o concerto, com direito a uma passagem só para eles, sem outros instrumentos; Guilherme Rodrigues a retirar sons da madeira do violoncelo; um saxofonista a transformar-se, por momentos, num cantor; o neozelandês Damian Stewart a fotografar a orquestra onde veio parar por acaso; Abdul Moimême a tocar o seu saxofone tenor fora do palco; crescendos alienígenas em que jazz, electrónica e outras músicas se misturam e digladiam e momentos de quase silêncio ou de destaque de um só instrumento.
Antes, o saxofonista soprano e flautista Jorge Lampreia explicava-nos a “riqueza desta música”: “É música-música”, que vale mais pela “capacidade de audição enquanto se está a tocar” do que pela “técnica dos instrumentistas”. Ernesto Rodrigues: “Isso é uma coisa que está patente nestas novas músicas. É mais importante saber estar do que ser virtuoso. Conheço muita gente que toca muito bem mas se vier tocar aqui só faz asneiras. Há que saber estar, saber gerir o silêncio com o fortíssimo, com os pianos, com os “tuttis”, os solos, as dinâmicas, os andamentos, os timbres – a música é feita disso. A riqueza tímbrica e tudo o resto é o que mais me seduz numa orquestra. É uma panóplia infindável”.
A existência de uma entidade como a VGO assinala a boa saúde das músicas experimentais em Portugal, nomeadamente em Lisboa. A cidade tem vindo a fortalecer um circuito de locais, agentes e público interessado, sendo habitualmente assinalada a força do experimentalismo português por oposição ao da vizinha Espanha. “Stills”, o disco da VGO, é o centésimo da Creative Sources, editora fundada em 1999 por Ernesto Rodrigues que é presença habitual nas páginas de crítica de publicações especializadas como a “The Wire”.
A orquestra é sintoma deste estado de coisas e potencia colaborações entre diferentes gerações de músicos. Já há quatro gerações de experimentalistas em Portugal (Ernesto é da segunda) e todas já participaram na VGO, assinala o mentor do projecto.
Guilherme Rodrigues, filho de Ernesto, é o rosto dessa quarta geração. Não é habitual aos 19 anos um rapaz estar a improvisar com músicos tão reconhecidos, mas Guilherme começou ainda mais novo. Tinha 11 anos quando entrou num disco, improvisando com o pai e José Oliveira. “Desde que nasci, que ‘levo’ com isto em casa”, conta. “Estudo no Conservatório e toco na Orquestra Sinfónica Juvenil, mas gosto muito mais de improvisação livre”. Ernesto conclui: “Esta linguagem é universal. Os arquétipos são os mesmos”.
Pedro Rios (Jornal Público)

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