terça-feira, 29 de agosto de 2017

LISBON STRING TRIO - Em busca do acorde perfeito


Diceros (foto de Nuno Martins)



O outro trio de cordas de Lisboa lançou seis discos seis com a sua particular proposta de música de câmara improvisada, cinco deles com músicos de outros países que, propositadamente, não tocam cordofones. O seu propósito é mostrar que o que três ou quatro pessoas criam musicalmente em conjunto, com poucos elementos (notas), só pode ser melhor do que aquilo que fizer uma apenas, com muitos. Dizendo de outro modo: um acorde ou é colectivo ou resulta imperfeito.

A designação Lisbon String Trio tem o inconveniente do muito uso e da possibilidade de ser confundida com outros projectos, e logo para começar dentro do próprio rectângulo de terra a que chamamos Portugal. Foi exactamente com esse nome que tocou, no Jazz em Agosto de 2016, a secção de cordas (portuguesa) dos Young Philadelphians de Marc Ribot. Aos músicos clássicos João Andrade (violino), Teresa Fleming (viola) e Nelson Ferreira (violoncelo) foi pedido que, além de lerem as partituras de temas históricos de disco e R&B, também improvisassem. Dessa tarefa saíram-se bastante bem, não obstante a sua inexperiência nesse tipo de abordagem e o atabalhoamento da condução de um Ribot a tocar e a dirigir em simultâneo. Lisboa String Trio é ainda (só varia uma letra) o nome de um grupo que junta José Peixoto (guitarra), Bernardo Couto (guitarra portuguesa) e Carlos Barretto (contrabaixo), também ele dedicado a associar o jazz com outras formas de música, no caso a nacional.
Este outro Lisbon String Trio nada tem que ver com ambos esses exemplos, ainda que, à semelhança do último, não corresponda à instrumentação típica do trio de cordas da música de câmara. Nesse domínio, as variantes vão para as combinações entre violino, viola e violoncelo (a mais comum), dois violinos e violoncelo, dois violinos e viola e uma reduzida quantidade de outras associações, a mais conhecida e recente das quais concretizada por um homem que, habitualmente, compõe e toca jazz, John Zorn – trata-se de “Walpurgisnacht”, de 2004, para violino, viola e contrabaixo. Agora, a fórmula junta uma viola, a de Ernesto Rodrigues, um violoncelo, o de Miguel Mira, e um contrabaixo, o de Alvaro Rosso. Todos os três têm um percurso na livre-improvisação e é nesse âmbito que actuam. Com a particularidade de dois deles (Rodrigues e Rosso) terem formação clássica e um (Mira) vir do jazz, do funk e dos blues, se bem que com outras experiências de renovação do modelo camerístico de permeio, nomeadamente a do Staub Quartet, com Carlos “Zíngaro”, Hernâni Faustino e Marcelo dos Reis.
A reunião destes três improvisadores não era a mais óbvia de ocorrer, dado que Ernesto Rodrigues tem feito o seu percurso na linha do reducionismo, Miguel Mira prefere situações mais “jazzy”, como a do Motion Trio de Rodrigo Amado, que integra, e Alvaro Rosso tem-se notabilizado numa linha “old school” (passe o termo) da música improvisada. O álbum “Proletariat” revelou, no entanto, que a mistura destas personalidades trazia algo de particularmente interessante. O princípio número 1 do trio está na utilização individual do mínimo de elementos, num contexto em que o que realmente importa é o efeito de conjunto. Só há acordes quando o último membro do trio acrescenta uma nota às dos seus parceiros, sabendo que é essa nota que dá seguimento ao que vem depois, num imediatismo da responsabilidade que pode ser esmagador. É como se se procurasse o acorde perfeito, e “perfeito” porque resultante de uma verdadeira, não planeada, espontânea, geração.
Se tal, nesse disco, funcionou como um modelo, os cinco CDs posteriores (e editados em rápida sucessão) desta cooperativa musical colocaram-no em causa (ainda que prolongando as suas implicações) sempre com a inclusão de um convidado, por regra um músico de outro país em passagem por Portugal. Além de se transformarem as situações triangulares em quartetos bem menos esquemáticos, quebrou-se com o molde “grupo de cordas”. “Télépathie” juntou ao trio o saxofone soprano do francês Étienne Brunet. Em “K’ampokol Che K’aay” figura o norte-americano Blaise Siwula com um nele pouco usual clarinete (os seus instrumentos habituais são os saxofones alto e soprano). Em “Akuanduba” encontramos o clarinetista (baixo e soprano) brasileiro Luiz Rocha, radicado em Barcelona e parte da cena que gira à volta da Discordian Records. Em “Intonarumori” está o trombonista italiano Carlo Mascolo. Finalmente, em “Liames” intervém a pianista canadiana Karoline Leblanc. Rocha, Mascolo e Leblanc são frequentes participantes no MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia, com presenças a repetirem-se em várias edições. Brunet participou em 2017 num concerto do “ensemble” Paris-Lisbonne Connexion (Cinemateca Portuguesa) em que estiveram envolvidos José Lencastre, José Bruno Parrinha, Luís Vicente, Tiago Varela, Miguel Mira, Pedro Santo e Monsieur Trinité. Também este ano, Siwula tocou nas Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo, e na Zaratan, em Lisboa, com Jorge Nuno, Hernâni Faustino, Pedro Arelo e André Calvário.
Apesar das necessárias diferenças introduzidas pelo trabalho do quarto elemento, bem como dos questionamentos a que procedem das linhas condutoras do Lisbon String Trio, o que se verifica na audição destes discos é que a identidade do mesmo prevalece. Mantêm-se tanto as diferenças relativamente à música europeia contemporânea e à new music americana como o vínculo formal com as ditas, mantêm-se as dúbias relações com as referências do free jazz, umas vezes mais pacíficas e outras claramente em conflito, assim como são ambíguas as conexões da prática improvisacional perseguida com o “near-silence” e as preferências desta tendência pela textura e pelo timbre. As minhas preferências vão para a edição que apresenta o trio, até porque é aquela que define os fundamentos do projecto, e para os títulos em colaboração com Luiz Rocha e Carlo Mascolo, personalidades da improvisação dos nossos dias a quem ainda não foi dado o pleno reconhecimento internacional que merecem.
Não termino sem assinalar que as excelentes capas destes álbuns têm como base colagens de Dilar Pereira, artista visual que colabora com a jazz.pt. Rui Eduardo Paes (Jazz.pt)