quinta-feira, 28 de novembro de 2013

MÚSICA GESTUAL


photo: Ernesto Rodrigues

O gesto tem cada vez maior importância na música do violetista português, e é por essa via que a sua improvisação reducionista está mais próxima dos conceitos aplicados na chamada noise music. Pois oiçamos os seus nove discos mais recentes…

A ideia de gesto nas artes tem um duplo atributo – respeita tanto ao resultado (uma pincelada, um som) como ao movimento que o produziu. Regra geral, porém, o que o apreciador da obra artística percepciona é a realização sem o movimento, sendo este apenas imaginado. E é neste ponto que se introduz um elemento desorientador, pelo menos no que à música diz respeito: há sequências sonoras que entendemos como gestuais, pelo modo como nos surgem na audição de um disco (regra geral, num concerto vemos o que ouvimos), mas dificilmente visionamos como foram realizadas – acontece tal, sobretudo, nas criações electroacústicas que aplicam os princípios do concretismo, com a anulação da “causa sonoris” para uma totalmente autónoma vivencialidade do som.

Se poderíamos dizer, assim sendo, que o desconhecimento da fisicalidade do gesto anula o seu efeito perceptível, o certo é que tal não acontece. Na música, a própria fisicalidade do som basta para concluirmos dessa abordagem gestual. Há um movimento intrínseco e uma imaginação do movimento, ainda que esta seja imprecisa. Os conceitos instalados quanto ao gestualismo sonoro têm como quadro a música escrita de tradição académica, vulgo “clássica” – o gesto está predefinido, restando apenas ser realizado em cada performance. Esse gesto pode ter uma curta duração, mas não é efémero. A notação estipula que se repita.

Quando se trata de música improvisada, prática iminentemente performativa, não há previsão e muito provavelmente também não haverá repetição. Nem por isso a importância do gesto se relativiza face à consequencialidade do som: este aconteceu e foi determinante para a trama que se desenvolve, mesmo que o seu momento passe depressa, para não mais voltar. Se essa improvisação é gravada, reencontramo-lo. O gesto musical improvisado pode ser fugaz, mas é tão efectivo quanto algo que cuidadosamente se coreografe.

Ernesto Rodrigues é um músico gestual e um improvisador, e a diferença que o seu gestualismo improvisado tem com o gestualismo clássico não está somente na inexistência de uma partitura que lhe conduza os movimentos. É a forma como utiliza o instrumento que define esse corte com a previsibilidade. Os sons que produz nem sequer são possíveis de notar, pelo menos convencionalmente – na maior parte dos casos não se trata de notas, ou seja, sons musicais, e sim de ruídos (por definição: sons “sem significado”) provocados pela manipulação de todo o corpo da sua viola (também da harpa, que toca em dois dos títulos aqui referidos, e da armação interior do piano).
Ora, o ruído consegue ser bem mais gestual do que um som temperado, um tom. Quando ouvimos um raspanço, imaginamos algo a raspar. O som é o gesto, o gesto é o som. Mas atenção: não é necessariamente uma unha sobre a madeira da viola que nos vem à mente. As possibilidades imagéticas são imensas, dando a este tipo de improvisação um carácter cinemático sem igual. Daí decorre que tanto a estética reducionista, tendência em que Rodrigues se insere, como a chamada “noise music” – também ela muito frequentemente improvisada – sejam ambas músicas gestuais, e exactamente pelos mesmos motivos. Nesse aspecto, pouca diferença faz que no reducionismo se proceda ao “close miking” do sussurro e que no noise se explore esse excesso de sinal sonoro a que se chama “feedback”.

O interessante nesta similitude de posicionamentos é o facto de a corrente reducionista estar gradualmente a assumir-se como uma música noise, uma música de ruído. O volume será, sem dúvida, consideravelmente mais baixo do que qualquer coisa que Merzbow e Pita façam, mas longe estão os lançamentos de que aqui damos conta da ortodoxia “near-silence” de há uns anos. 
[…] Ernesto Rodrigues vem colocando importantes deixas para análise no que respeita à estética reducionista, à utilização do ruído e à gestualidade da música. Basta ouvir com atenção e tirar as ilações…
Rui Eduardo Paes (Jazz.pt)

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