photo: Rodrigo Amado Motion Trio Large Ensemble by Bruno Ferrari
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Foi com 24 concertos, nos mesmos sete dias da cristã criação do mundo, que se cumpriu a 13ª edição do festival promovido pela Creative Sources. Muito aconteceu pelos lados de Belém com a participação de várias dezenas de improvisadores portugueses e uma mão-cheia de convidados de outros países – a jazz.pt faz “zoom”, neste relato, sobre duas das sessões...
Foram sete dias seguidos de festival, de 18 a 24 de Novembro, com três ou quatro concertos por sessão no O’culto da Ajuda, em Lisboa, num total de 24. Com 13 anos de vida cumpridos em 2019, o Creative Sources Fest já há muito nos tinha habituado a tamanha oferta. Uma boa parte dos participantes – os habituais no catálogo da editora conduzida por Ernesto Rodrigues – surgiram várias vezes em palco, integrados em diferentes formações, mas ainda assim houve lugar para a imprevisibilidade e a surpresa.
Os Spiegel abriram as três noites iniciais com a aplicação de um conceito assaz interessante: na segunda actuação tocaram com, e sobre, a gravação da primeira, e na terceira sobre, e com, os registos das duas anteriores, jogando com as dicotomias entre o directo e o diferido, a improvisação “in loco” e a que criativamente se pode estabelecer com a memória auditiva documentada. Carlos “Zíngaro”, um veterano da música improvisada nacional (e internacional, será de acrescentar) que só se associou à marca Creative Sources quando, o ano passado, surgiu como convidado especial do Lisbon String Trio no álbum “Theia”, esteve presente em três importantes momentos – um em que tocou com Ernesto Rodrigues, Guilherme Rodrigues, Hernâni Faustino e o recentemente regressado às lides musicais José Oliveira, outro inserido no colectivo IKB (para o qual contribuiu também essoutro nome maior da música nacional que é Pedro Carneiro) e um terceiro com o Rodrigo Amado Motion Trio Large Ensemble. Encontrá-lo na mesma formação em que esteve Maria Reis, a vocalista e guitarrista das roqueiras Pega Monstro, não era propriamente expectável.
Façamos, para este relato do que aconteceu em Belém, um “zoom” sobre dois dos dias do cartaz, os de 22 e 23. A maratona arrancou com um quarteto de ocasião em que três músicos portugueses que antes já tínhamos encontrado juntos, Luís Vicente, Rodrigo Pinheiro e Hernâni Faustino, contracenaram com o baterista belga Tom Malmendier. Mais próximo do jazz do que a maior parte dos grupos alinhados para esta edição do festival, o quarteto pegou nos motivos da linguagem free e adequou-os a uma situação que prescindiu de qualquer tipo de amplificação (contrabaixo “unplugged” e ausência de microfones), com a bateria a trocar a habitual sustentação motórica por construções texturais de especial elegância. A música resultante tornou-se acentuadamente meditativa, se bem que decorrendo ao largo de quaisquer paisagismos. Instantes houve em que parecia estarmos a ouvir o Kenny Wheeler dos anos 1970, trompetista por quem, de resto, Vicente tem particular devoção.
Os minutos introdutórios da prestação que se seguiu, de Étienne Brunet com Carlos Santos e Carla Santana, pareciam dirigir-se para terrenos bem distintos, com o saxofonista francês a associar-se com um “laptop” aos sintetizadores e demais parafernália electrónica dos seus parceiros de circunstância. Quando Brunet pegou no sax soprano voltámos a ouvir os típicos fraseados do jazz, numa abordagem tonal que contrastava assumidamente com os crepitares ruidosos (Santos) e os “drones” de base (Santana) que o envolviam. Por detrás do trio passou um vídeo com imagens invertidas do mar e do céu, emaranhados de cabos eléctricos e um Étienne Brunet a tocar para elefantes, com o músico e os animais convertidos em manchas de cor. Foi curioso e interessante quanto baste.
O melhor veio depois com o projecto String Theory, uma piscadela de olho deste agrupamento exclusivamente de cordas (que incluiu um piano, mas sem uma única vez se terem utilizado as teclas) à chamada teoria das cordas, ramo da física que procura explicar o universo substituindo a noção de que a essência deste não está nas partículas em forma de ponto da vulgata desta ciência, mas nos objectos unidimensionais a que se dá o nome de cordas, devido à condição vibracional dos ditos. Pois o concerto lidou precisamente com o factor vibração, com os intervenientes (Ernesto Rodrigues, Maria do Mar, Ulrich Mitzlaff, Miguel Mira, Ricardo Jacinto, Abdul Moimême, Pedro Bicho, Hernâni Faustino, Sofia Queiroz e Mariana Carvalho) a subverterem as lógicas seculares dos ensembles camerísticos formados por cordofones sem nunca verdadeiramente saírem desse âmbito. O eixo do decateto esteve na combinação da viola de Rodrigues e do violino de do Mar, que conduzia todos os procedimentos, com a tríade de violoncelos e a dupla de contrabaixos a ampliarem os efeitos vibracionais causados por esse núcleo como se fossem as rugas causadas por uma pedra na superfície da água de um lago. Às duas guitarras e ao interior do piano coube o acrescento dos demais contributos sonoros, sempre com o propósito de dar a perceber que pontuar é, afinal, traçar uma linha.
A noite que se seguiu arrancou com um solo da italiana de origem coreana Yu Lin Humm, todo ele feito de delicadas filigranas, numa sonoridade mista de música clássica e folk. Ainda que de agradável audição, a curta peça era muito obviamente escrita e foi interpretada sem introdução de passagens improvisadas, ou assim pareceu, pelo que surgiu algo desenquadrada no âmbito em causa. Totalmente improvisada – e a cada passo beneficiando da experiência como improvisadores dos três músicos – foi a prestação de Ernesto Rodrigues e Rodrigo Pinheiro com o norte-americano Fred Lonberg-Holm que se sucedeu a esse simpático equívoco. Inebriante, misteriosa, alternando entre uma grande intensidade e mais serenos caudais, dir-se-ia que a música deste trio em estreia absoluta vinha de percursos comuns entre todos e até de repetidos ensaios, mas assim não se verificava. Nada tinha sido previamente estabelecido, e apesar disso aconteceu aquela imediata empatia musical que só a prática da improvisação permite, mas que raras vezes se proporciona.
Tocou depois o Trio PAN(a)Sónico de Maria do Mar com os espanhóis Juan Cato Calvi e Luis Erades, este sim, um grupo que tem tido um trabalho continuado no tempo. A violinista, o clarinetista e o saxofonista levaram para o O’culto uma partitura, com a performance a variar entre a sua estrita leitura e improvisações nela inspiradas ou dela derivadas, alturas havendo em que se tornou difícil distinguir o que estava notado e o que foi espontâneo. Harmónicos, dissonâncias, choques de frequências, multifónicos, microtons: deste tipo de materiais se fez a proposta, criando uma zona de reconciliação entre a sensualidade das formas e o cerebralismo dos processos. Mais uma vez do Mar revelou estar numa excelente fase do seu percurso e especialmente cativante foi o modo como Calvi usou a voz em uníssono com o clarinete baixo, como se fosse o Ian Anderson (flautista dos Jethro Tull) das madeiras.
“Zoom” desfeito e grande plano: pelo que se ouviu no Fest deste ano, a música improvisada está de óptima saúde no nosso país, e ainda capaz de nos oferecer coisas novas e diferentes. Valerá a pena acompanhar os próximos episódios desta cena sedimentada à volta da Creative Sources. O mundo está criado, resta-lhe que viva… Rui Eduardo Paes (Jazz.pt)